Ária nº 1. Da taverna à telinha: a presença de 'Macário' no seriado 'Tudo o que é sólido pode derreter'
*Este texto contém spoilers.
É noite de um sábado chuvoso. Thereza (Mayara Constantino) ouve uma música melancólica, e Joana (Isabela Boton) está entediada. A garota, com seus 10 anos de idade e fascinada por filmes de terror, pede, então, à prima mais velha que lhe conte a origem do objeto que está em cima da cômoda do quarto – uma soturna escultura em forma de gárgula. Assim, já repleto de elementos sombrios, começa o sexto episódio de Tudo o que é sólido pode derreter, seriado exibido pela TV Cultura em 2009 e dirigido por Rafael Gomes e Esmir Filho. Com a nobilíssima intenção de mesclar literatura de língua portuguesa ao cotidiano juvenil, a produção prestou uma homenagem à peça teatral Macário logo na sua primeira temporada.
![]() |
Thereza se encontra com um rapaz desconhecido. Esse mote é o mesmo de Macário. Foto: reprodução. |
Thereza começa a narrar, em tom misterioso, que ganhou a estatueta de um amigo: “Essa é a história de um encontro”. Na sequência, entra um flashback dela e de Marcos (Victor Mendes), seu colega de escola, saindo às escondidas para uma questionável festa “gótica”. Por estarem vestidos de preto, Thereza não quer que a mãe os veja naquele figurino.
Os dois partem de táxi e chegam a uma casa onde outros adolescentes, também com roupas escuras, dançam ao som de um rock pesado. Na mórbida confraternização, o clima é de tédio, pois o repertório musical não corresponde ao gosto dos convidados. Frustrada, Thereza sai para tomar um ar. Fora do recinto, a protagonista se depara com um jovem desconhecido que, solitariamente, lê um livro — Macário — e a encara profundamente. A luz acaba, e o rapaz, chamado R., convida Thereza para um passeio pela noite e, simultaneamente, pelo imaginário de Álvares de Azevedo. Com eles, o público também mergulha no mundo febril do nosso maior poeta ultrarromântico.
Em todo o episódio, notam-se ecos da obra do escritor paulistano, seja de modo explícito nos diálogos dos personagens (que comentam sobre ela), seja na estruturação do episódio. Quando Thereza afirma, por exemplo, que a história da estátua é fruto de um encontro, ela evoca Macário implicitamente: a trama do estudante do século 19 é igualmente permeada pelo encontro macabro com Satã. Além disso, as duas narrativas se passam numa São Paulo não identificada. No texto de Álvares de Azevedo, não há uma menção clara à metrópole. E o seriado também sublima essa informação. Ao ser perguntada por Joana acerca da localização exata da festa, Thereza desconversa dizendo que o evento ocorreu na rua “Três Pontinhos”. Enquanto caminha pelas paisagens noturnas, Thereza, assim como Macário, também conversa com o desconhecido sobre conflitos existenciais e identitários.
![]() |
Uma edição de Macário aparece nas mãos do jovem misterioso. Foto: reprodução. |
Estruturalmente, o episódio obedece ainda a uma sequência de cenas similar à da peça: alterna locações internas e externas. Como pontuou o crítico e literato Antonio Candido, no texto Educação pela noite e outros ensaios, há uma estrutura circular em Macário que amarra a história unindo o início ao fim. Na escrita azevediana, o interior do quarto da estalagem é mesclado com a exterioridade de uma estrada. De modo análogo, a trama de Thereza pula constantemente do presente, com ela num ambiente interno (o quarto), para o flashback em externas (as ruas de São Paulo).
Ademais, o episódio mostra o enigmático R. e a protagonista indo ao cemitério — acontecimento idêntico ao que aparece na obra teatral. Entretanto, como Joana reclama da morosidade da experiência relatada pela prima, Thereza se vê obrigada a mentir para tornar o fim de sua narrativa mais horripilante. Dissimuladamente, a moça diz, então, que R. era, na verdade, um vampiro que a mordeu no pescoço. Em seguida, ele teria mandado a gárgula do Além. Outro flashback, porém, mostra um desfecho bem diferente: depois de passarem a madrugada conversando entre as tumbas e visitando outros points obscuros da cidade, Thereza se despediu do novo amigo e voltou para casa de táxi. O clima dúbio, onírico e incerto criado pela protagonista vai ao encontro do desfecho de Macário: o estudante também não sabe se seu encontro com o Demônio foi real ou mera fantasia. Mas as pegadas de cabra no chão da estalagem dão a entender que tudo aconteceu de verdade.
Outro ponto bastante curioso sublinhado por Candido, em sua produção ensaística, é o gancho que Macário cria para outra obra de Álvares de Azevedo. A peça termina com Satã mostrando ao personagem-título a janela de um bar com cinco jovens bebendo. Trata-se da descrição idêntica apresentada no início de Noite na Taverna, antologia de contos macabros. Assim, novamente, Macário se filia ao caráter de serialização presente na TV: do mesmo modo que o último ato da peça prenuncia a continuação da história no próximo livro, o seriado prepara o espectador para outra parte da história ambientada no mesmo universo.
Por isso, parafraseando o próprio Macário: é difícil, na vida e nas artes, marcar o lugar onde termina uma coisa e começa outra. Na tavernas literárias ou audiovisuais, as criações obscuras conseguem sempre nos assombrar e nos encantar. Como diria Satã, paremos aqui, mas vamos espiar a janela (e as telas, e as páginas).
Veja o episódio completo neste link.
Comentários
Postar um comentário