Ária nº 2. 'Clube da Insônia' e a literatura noturna de Tico Santa Cruz

 

Publicado em 2012 com o primor gráfico da editora Belas Letras, Clube da Insônia é um livro que reúne crônicas, poemas e devaneios do músico Tico Santa Cruz. A obra é resultado do blog homônimo mantido durante anos pelo vocalista do Detonautas. Com um ser híbrido (misto de humano e animal) estampando a capa, a antologia passeia por vários temas de deleites da luxúria a epifanias espirituais , mas mantém, em todos eles, a mesma abordagem, que aqui vou chamar de “noturna”. Conforme já anunciado na atraente sinopse, a escrita do roqueiro propõe um mergulho na escuridão da vida urbana e cumpre muito bem esse objetivo.

A famosa escultura O pensador, de Auguste Rodin, símbolo da filosofia, ganha uma versão sombria e animalesca na capa de Clube da Insônia. Foto: reprodução.

Ao ler cada um dos 22 textos da coletânea, tive a sensação de estar na janela de um alto edifício olhando a madrugada tragar a metrópole aparentemente adormecida. É como se todas as reflexões de Tico Santa Cruz estivessem impregnadas com elementos que remetem à noite fato que dá contornos autorais, singulares e estilísticos à sua produção literária. Assim como no pungente e agressivo romance Pólvora, chumbo e sexo, também escrito pelo músico, em Clube da Insônia, deparei-me com a subversão, a rebeldia e, sobretudo, com o fascínio noctívago do autor.

A sensação de ler Clube da Insônia é a mesma de contemplar uma cidade durante a madrugada.

No poema inaugural da obra, “Somos nós a madrugada”, Santa Cruz já declara: “Sou da noite” e “a noite me basta”. Nesse trecho do livro, ele consegue criar uma atmosfera que sintetiza bem todos os convites feitos pelo anoitecer: o silêncio, o medo, a angústia, a luxúria, vinhos, velas, livros, bebida, sexo. Trata-se, enfim, de uma verdadeira ode ao derradeiro período do dia.

Apesar de haver muita beleza nessa composição poética, o meu texto favorito é, sem dúvidas, “Nosso sagrado antídoto”, que também reverencia as sombras logo no seu limiar: “As noites de lua cheia de cor laranja” e “as criaturas da noite”. Além disso, essa crônica apresenta uma estrutura que remete ao caos de vários pensamentos que assaltam nossa cabeça durante uma madrugada insone. Assim, do mesmo modo que as frenéticas ideias noturnas vão e vêm sem coesão, os períodos desse texto não apresentam urdiduras conjuntivas eles são escritos apenas com uma sequência encabeçada de artigos e substantivos. Entretanto, o encadeamento de vocábulos consegue descrever a vastidão de uma vida inteira em todas as suas nuances. E, sem nenhum pudor, o escritor realça até os nossos momentos mais banais como ações relevantes da nossa trajetória. Sinto-me particularmente pleno, jovem e encorajado quando leio esse capítulo do livro.

Outras criações curiosas são “Das coisas que mudam o mundo” e “A visão do gato” (olhe o animal ligado à noite aí). Cronísticos, esses textos exploram, respectivamente, a inusitada reflexão que a depilação masculina pode trazer e a vida pela perspectiva de um felino. No primeiro, Tico Santa Cruz relembra cicatrizes, episódios de infância e o significado de tatuagens enquanto desliza a lâmina do barbeador pela pele. É também por meio dessa ação corporal que ele chega a conclusões sobre sua própria identidade. Já o narrador da segunda crônica é, surpreendentemente, Capone, o bicho de estimação do cantor. Em quatro páginas, o gato protesta contra as ações humanas e sonha com uma rebelião à la George Orwell para fazer os homens experimentarem o próprio veneno.

A verve crítica e política é, aliás, outro ponto recorrente nos escritos “santacrucianos”. Nesse sentido, saúde, educação e os rumos da sociedade também aparecem diluídos nas linhas de Clube da Insônia. A obra termina, inclusive, com um sonoro poema cheio de figuras de linguagem em “Senado Finado”, o autor brinca com rimas, quiasmos e aliterações. O texto, porém, não se esquece de sua filiação noturna. Tanto é assim que seu último verso é: “Quem sair por último que apague a luz do salão”.

Com ilustrações ambíguas, esotéricas e traçadas a nanquim, Tico Santa Cruz dá arremates ainda mais sombrios à sua criação. O que tanto me agrada nessa obra é exatamente a junção de tudo isso, que me atrevo a chamar de “estética da noite”. Mesmo situado num centro urbano cheio de luzes, o autor consegue perscrutar os pontos mais escuros da metrópole. E essa escuridão se derrama no livro por meio de descrições, escolhas semânticas e – o mais interessante – da própria estruturação do texto. Unidos, poemas e crônicas formam um vasto e coerente mosaico com peças recolhidas na mesma matriz: a sempre fascinante madrugada. Eu que o diga. 

 

 

 

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