Ária nº 3. Olha só o que eu achei: a doce melancolia de ‘Vento no Litoral’

 

Ser abraçado por um fantasma e me tornar um só com ele. Essa é a sensação que tenho toda vez que ouço Vento no Litoral, da Legião Urbana. Os seis minutos e seis segundos da canção me levam a um longínquo e solitário fim de tarde. Nesse cenário, eu me imagino diante do mar sendo tocado por uma brisa que representa a presença onírica de um amigo que se foi.

Profundamente simbólicos e ambíguos,
o mar, a brisa e os cavalos-marinhos se unem para
criar a atmosfera delicada e dolorosa de
Vento no Litoral.

A composição está no “V” – disco cheio de referências obscuras e melancólicas. De acordo com a doutora em Literatura Julliany Mucury, na obra Renato, o Russo, as influências de bandas de rock gótico, como a britânica The Cure, são notórias em todo o álbum. Em “Vento no Litoral”, especialmente, há muito dessa soturna melancolia. Letra e melodia são, contudo, melíferas.

A música é trucidante e envolvente; triste, mas agradável; dolorosa, porém deliciosa. Até mesmo o encadeamento do sibilante fonema /v/, usado em versos como “e o vento vai levando tudo embora”, parece nos desintegrar suavemente. Ao ouvi-lo, sinto-me etéreo e flutuante sobre as águas do oceano. Há a impressão de que a dor e a saudade nos estilhaçam e depois nos sopram, delicadamente, como poeira, em direção ao horizonte.

No livro Letra, música e outras conversas, de Carlos Leoni, o próprio Renato Russo afirma que essa canção descreve a triste relação entre um casal gay. O grande ícone do enlace seria a evocação do cavalo-marinho, única espécie da natureza em que o macho engravida. Por isso, ele foge dos padrões da normalidade.

Possivelmente composta para expressar a ausência de Robert Scott, o estadunidense que viveu um romance com o cantor, Vento no Litoral, serviu ainda de inspiração para textos literários. O conto homônimo de Marcelo Moitinho para a antologia Como se não houvesse amanhã amplia o sentido da canção ao apresentar um cenário de separação de um casal: caixas embaladas e prontas para a mudança. Em meio aos objetos, o personagem encontra um cavalo-marinho seco, presente de seu companheiro, e se lembra dos momentos que viveram juntos. No fim da história, o animal (mesmo sem vida) é devolvido ao mar. Tal atitude simboliza o último passo para a libertação do narrador.

Já a dramaturga Regiana Antonini também se vale da premissa de dois homens que se gostam, mas enquadra esse querer numa amizade. Em Aonde está você agora?, peça teatral que virou uma novela literária, a autora nos conta a jornada de Pedro e Gabriel, amigos que são separados pelas viradas da vida, mas prometem se encontrar diante do mar anos depois. Encontro este que será difícil (e eles nem suspeitam), pois os dois jovens estão bastante transformados pelo tempo. Desavisados, não se deram conta de que, simbolicamente, o mar representa – na música e no livro – o fluir grandioso, imprevisível e descontrolado da vida.

Ambos os textos, apesar de serem adaptações, guardam a essência doce e melancólica da composição original. Acredito, aliás, que qualquer admirador que se proponha a escrever uma releitura de Vento no Litoral (ou apenas ouvir a canção) jamais poderá escapar desse sentimento tão ambíguo. Sofrer e sorrir com a brisa acariciando os cabelos; chorar e planar em meio à beleza da imensidão das águas; encontrar a plenitude na contemplação do horizonte e, ao mesmo tempo, mergulhar num oceano triste e escuro. Eis o destino dos fãs dessa irresistível e sublime obra musical.

 

 

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