Ária nº 6. ‘My Immortal’ e a dor que o tempo não apaga

Detesto excesso de otimismo. Prefiro a vida como ela realmente é: fria, triste e, para muitos, sem qualquer possibilidade de esperança. Por isso, a canção “My Immortal”, da conhecida banda de rock gótico Evanescence, agrada-me sobremaneira. A letra descreve uma relação de dependência entre duas pessoas. Uma delas se foi (pela morte ou separação). E a outra permanece num profundo estado de luto que afeta até mesmo a sua sanidade. Dentre os vários versos melancólicos, três deles, em especial, me chama a atenção: “Estas feridas não vão cicatrizar. Esta dor é muito real. Há muitas coisas que o tempo não pode apagar”.

"My Immortal" foi lançada originalmente no disco Fallen, de 2003.

Na contramão da pieguice alastrada por influencers, redes sociais e legendas prontas  que dizem que “o tempo cura tudo” e “deixe o passado para trás” , a música assume uma postura madura e raramente vista: a aceitação de feridas emocionais. O correr dos dias, no universo da canção, não ameniza os sentimentos mais pungentes. E tudo bem. Podemos aprender a conviver com eles.

Nesse ponto, lembro-me de Quíron, o sábio centauro da mitologia grega, condenado a carregar uma ferida incurável apesar de todo o seu conhecimento médico. Imortal, Quíron não podia morrer, mas também não podia sarar. Sua existência tornou-se um ato de resistência silenciosa, uma convivência amarga e, ainda assim, profundamente humana com a dor que não passa. “My Immortal” parece dialogar com esse mesmo arquétipo: o eu lírico da música não busca a cura a qualquer custo. Ele reconhece a ferida como parte inseparável da jornada.

A canção, em sua delicadeza espectral, não oferece conselhos nem promessas de redenção. Oferta, talvez, algo muito mais extraordinário: a permissão para sofrer. Para se reconhecer frágil. Para chorar por aquilo que ficou eternamente sem conclusão. O outro evocado na composição é como um fantasma que se transforma em companhia silenciosa para quem se recusa a esquecer quem já partiu.

Híbrido de homem e cavalo, Quíron simboliza
a sabedoria extraída da dor incurável.

Enquanto o mundo insiste em nos empurrar para um estado forçado de superação e celebração constante, Amy Lee nos sussurra que há honra na tristeza. Que não precisamos transformar toda perda em força, nem todo trauma em lição. Algumas dores apenas são — e nelas habita um tipo de beleza devastadora que nos constitui.

Aceitar essa dimensão da existência exige, é claro, bastante maturidade. E exige reconhecer que viver não é apenas vencer, curar, seguir em frente. Viver é carregar, silenciosamente, os pedaços quebrados daquilo que amamos e perdemos. Ao ouvir "My Immortal", como Quíron, que suportava sua ferida como parte inseparável de si, reconhecemos, enfim, que algumas dores não se vencem, não se contornam, não se negociam. Não se apagam.

 

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