Ária nº 5. Luto sob o Sol: a extraordinária metáfora do verão em “Love in the afternoon”, da Legião Urbana

 Para S., que foi embora cedo demais.

Gosto muito da metáfora utilizada pela psicóloga Mary-Frances O’Connor para explicar a dor da perda. No livro O cérebro de luto, a pesquisadora estadunidense nos diz que sofrer com o vazio deixado pela morte de alguém é acordar no escuro, tatear a mesa de jantar e descobrir que ela foi, inesperadamente, roubada. De repente, nosso suporte tão familiar e necessário não está mais na cozinha. E agora? O que fazer? Como sobreviver nesse ambiente conhecido, mas subitamente tão esquisito? Num campo diferente da psicologia – o artístico –, Renato Russo também se vale de uma construção metafórica similar para nos falar sobre o luto: o desaparecimento repentino do verão.

A relação entre o Sol e a tristeza é marcante em "Love in the afternoon".

Em “Love in the afternoon”, canção do disco O descobrimento do Brasil, o músico apresenta o desabafo comovente de alguém que sofre pela partida de um amigo. O eu lírico da composição se confunde, aliás, com o próprio cantor. Na obra Renato Russo de A a Z, ele mesmo afirma: “Esta música foi feita para o Luís, um amigo. A gente chegou a namorar um tempo. Ele morreu baleado por sujeitos estranhos (...) É uma música feita para diversas pessoas e, quando o Kurt Cobain morreu, a gente pensou: ‘Poxa, mas se encaixa direitinho’. Na verdade, esta música foi feita para todas as pessoas que vão embora cedo demais”.

Embora parta de experiências pessoais, Renato Russo se utiliza de vários elementos veranescos e vespertinos para tornar sua mensagem universal, paradoxal – e profundamente elegante. Elegante, extraordinária e original. O verão, aparentemente, nada tem a ver com morte, luto e perda. Ele é quente, enérgico, contagiante.

Para exprimir a tristeza evocada pela música, artistas mais óbvios recorreriam a um cenário típico do Romantismo do século 19: inverno, noite e escuridão. Renato, porém, subverte essa tradição. O título foi extraído de um filme de comédia. Já a melodia é doce e clara (com a presença de uma cítara, conforme nos conta Júlio Ettore. E a letra está repleta de uma agradável semântica solar. Ou seja, tudo em “Love in the afternoon” é luminoso, mas – impressionantemente – melancólico.

No Tarô Mitológico, Apolo (o Deus-Sol) aparece tocando uma lira, versão primitiva da cítara, que embala a canção da Legião Urbana.

Em versos como “dias assim, dias de chuva, dias de sol”, “era assim todo dia de tarde” e “lembro das tardes que passamos juntos” o compositor nos situa em um espaço vibrante, cotidiano, vesperal. Já no verso “só que este ano o verão acabou cedo demais”, a canção enlaça a morte do amigo falecido à interrupção da estação mais calorosa do ano. O período abortado é a vida ceifada antes da hora. Veja que imagem poderosa: o fulgor e a imponência do verão interrompidos abruptamente. Paradoxalmente, os dias de verão são mais longos e fortes que as noites. Entretanto, no âmbito da canção, eles se tornaram frágeis e abreviados.

A chuva mencionada pela letra também desponta carregada de significados profundos. Caída durante o verão, como nos ensinam os meteorologistas, ela desaba intempestivamente. É intensa, rápida e inesperada. Para o eu lírico, um dia de chuva é, portanto, aquele dia revoltante em que a dor pungente do luto nos devasta intensamente. Já o dia de sol é aquele momento em que dor aparece mais comedida, mais dispersa, mais conformada, melhor distribuída. Essa percepção dúbia e oscilante é reforçada pelo verso que diz “não é sempre, mas eu sei que você está bem agora”.

O ensinamento deixado por essa canção é: tudo bem viver o luto todos os dias. E é nisso que acredito. A maior prova de amor por alguém que vai embora é se lembrar dele sempre. Sempre. Na menor situação do cotidiano. No meio de uma comemoração. No local mais cheio e no mais solitário. Perder alguém que amamos será, afinal, hesitar entre duas sensações: se espantar com o desaparecimento de um simples móvel no meio da noite e ter a grandiosa sensação de que a magnitude do verão acabou cedo demais.

 

 

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