Ária nº 4. Acender para ascender: a sublime e dolorosa jornada de “A pequena vendedora de fósforos”
Oscar Wilde e Hans Christian Andersen
têm uma habilidade que me encanta profundamente: perscrutar lugares comuns e triviais
para retirar deles narrativas memoráveis. Em seus contos de fadas, os autores
mergulham em ambientes ordinários, lançam sobre eles lentes microscópicas e nos
elevam com tramas cheias de lirismo, beleza e ensinamentos. A Menininha dos Fósforos, de Andersen, é
uma amostra desse talento para extrair magia e reflexões sublimes de uma
situação aparentemente banal – e até miserável.
Pelas ruas de uma cidade qualquer, conforme nos conta o narrador, uma pobre garotinha faminta e descalça treme de frio. Enquanto caminha a esmo, sem ter coragem de voltar para a casa, ela observa as luzes e os adornos natalinos que colorem as casas. O medo que retarda seu retorno para o lar está personificado no pai, que a agride quando ela não vende os pacotinhos de fósforos que lhe foram confiados.
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De acordo com o filósofo francês Gaston Bachelard, em A poética do fogo, as chamas têm o poder de aguçar a imaginação humana. Isso aparece claramente no conto de Andersen. |
De repente, o cheiro de ganso assado, preparado para a ceia de Ano-Novo de uma das residências, encontra o olfato da triste criança coberta de neve. Nesse momento, ela vê um pequeno refúgio entre duas paredes. Ajeita-se ali e permanece quieta. Na tentativa de enganar o sopro gélido do inverno e se aquecer parcamente, a protagonista começa a riscar fósforos.
A primeira chama, ao se acender, traz consigo a ilusão de uma estufa aconchegante e calorosa. Instantes depois, porém, a claridade se esvai, e a parede escura da rua vem à tona. Outro fósforo, outra miragem. Agora a pequena miserável se vê diante de uma sala de jantar com uma ave posta para ser saboreada. Surpreendentemente, o animal ganha vida e foge com o garfo cravado nas costas. Uma vez mais, a luz expira. E o ganso desaparece com ela.
Novamente, a menininha risca outro palito. Surge nesse instante uma cena bela e, como as anteriores, também natalina. A frágil criança se admira debaixo de uma enorme árvore de Natal. Em seus ramos, centenas de cartões e velas irradiam uma iluminação esplendorosa. Encantada, a vendedora de fósforos ergue os braços para alcançá-las. Mas a chama se apaga, e ela passa a ver apenas estrelas no céu. Um desses astros cai de repente. A personagem se lembra, então, de sua avó. Ela sempre lhe dizia que, quando uma estrela desce do firmamento, é sinal da morte de alguém na Terra.
O riscar de mais um palito cria a mais agradável de todas as vertigens: a minúscula chama traz a própria – e falecida – avó para perto da solitária menina. A senhora aparece sorridente e circundada por um gracioso halo cintilante. Feliz, mas desesperada, a menina grita e se põe a riscar freneticamente outros fósforos para não perder a imagem de sua avozinha, pois ela sabe que o cessar da luz destrói todas as miragens.
Dessa vez, contudo, a bondosa mulher não se desvanece. Pelo contrário: toma a neta nos braços. E as duas voam. Voam radiantes. Voam para um lugar sem fome, frio e sofrimento. Voam para junto de Deus.
No dia seguinte, alheios a tudo o que aconteceu, moradores encontram o corpo gélido e sem vida da menina entre as paredes das casas. Em suas mãos, um pacote inteiro de fósforos queimados. Aqueles que a veem deduzem apenas o óbvio: ela queria se aquecer. Ninguém suspeitou, porém, de todas as maravilhas que ela vivera na noite anterior.
Pelas lentes críticas e politizadas do nosso tempo, o conto de Andersen pode ser comumente interpretado como uma crítica à desigualdade social, à pobreza e ao abandono de menores. Todavia, gosto de encará-lo por uma perspectiva mais espiritual – A Menininha dos Fósforos é uma releitura do sacrifício de Jesus.
Ambos estão inseridos, desde a infância, num contexto de pobreza. Além disso, os dois têm uma missão parecida: entregar luz às pessoas. Jesus de forma metafórica (por meio da mensagem salvadora). No Evangelho de João, ele mesmo chega a declarar que é “a luz do mundo”. Já a garotinha cumpre seu desígnio de modo literal ao vender palitos. Embora Jesus tenha sido acolhido por pais terrenos, ele se sentiu abandonado na hora da morte pelo seu legítimo genitor, Deus. E a garotinha de Andersen enfrenta a mesma orfandade.
O Natal dos dois personagens também se desenrola num ambiente simplório e num período parecido: o fim do ano (sim, não vou discutir a real data do nascimento de Cristo. Minha preocupação aqui é meramente simbólica). Ele viveu essa noite “feliz” numa manjedoura; ela, num beco esquecido da cidade. E as experiências dos dois foram ignoradas por todos à sua volta.
De modo análogo ao Messias, que antecipava as belezas do Paraíso e se valia de imagens metafóricas para isso, a menininha dos fósforos também o faz. Suas visões gloriosas, projetadas na rigidez de uma parede, antecipavam o porvir: o encontro com a avó e o retorno para Deus. Nesse momento, Cristo e a garotinha partilham exatamente do mesmo destino. Os dois morrem, deixam sinais da morte nas mãos (ele, cravos; ela, fósforos) e, por fim, ascendem aos Céus.
Pessoalmente, posso dizer que, assim como Cristo dividiu a História do mundo, a garotinha de Andersen demarcou minha existência. Diariamente, penso nessa personagem tão breve e tão bonita. Gostaria de estar com ela, de abraçá-la, de acolhê-la – assim como os cristãos desejam comungar com Jesus.
Essa delicada e graciosa menininha me ensinou que, para continuar vivendo, devemos criar e nos apegar a ilusões, mesmo que nunca se tornem reais. Por que não? Nessa tarefa de alimentar miragens, alguns se entregam em uma cruz. Outros acendem fósforos. E muitos (como eu) escrevem.
Lindo!
ResponderExcluirObrigado, meu caro e sombrio leitor! Sigamos com o nosso recitativo.
ExcluirÓtima história!
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