Ária nº 7. “Gasparzinho”: a dor e o luto são os maiores fantasmas do filme
Na minha infância, eu sempre via, na Sessão da Tarde, da Globo, um filme que me
provocava ternura e angústia: Gasparzinho, o
Fantasminha Camarada. Para muitas crianças, o divertido personagem espectral era apenas uma figura engraçada, amigável e atrapalhada. Meu olhar para ele, no
entanto, sempre foi outro. Esse ser fantasmagórico é um símbolo de todos
aqueles que partiram e jamais poderão voltar (mas que a nossa fantasia insiste em não
abandonar).
Anos mais tarde,
descobriria, pelos estudos de Freud, que aquilo que não foi resolvido sempre
retorna. Este é um caso. Eu nunca vou conseguir resolver, dentro de mim, a
morte de uma pessoa amada. E acho que seria até cruel superá-la. Não sei
superar. Não quero superar. E não entendo isso. Eu gostaria mesmo era de desfrutar de uma porção de tempo com quem já se foi.
E o filme explora bem essa possibilidade momentânea de retorno dos mortos.
Gasparzinho tem uma máquina alimentada por um elixir capaz de revivê-lo. Trata-se de uma criação de seu pai, que desejava devolver a vida ao filho. Mas o fantasminha nunca conseguiu operá-la, pois precisava de ajuda humana para destravar as engrenagens.
Somente quando a jovem Kat se muda
para a mansão assombrada, o espírito de Gasparzinho consegue se aproximar dela
e a convence a ligar a estranha engenhoca. Entretanto, o pai da garota morre. E
o fantasminha se vê diante de um dilema: usar a única dose do produto, capaz de
ressuscitá-lo, em si mesmo ou no progenitor de sua amada?
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| Gasparzinho segura a mistura capaz de trazer um morto ao mundo dos vivos. Foto: reprodução. |
Bondoso e abnegado, ele abre mão de voltar à vida, e Kat pode, por isso, reencontrar James. A mãe da moça, já falecida e convertida em uma espécie de anjo da guarda, fica comovida com a atitude do fantasminha e permite sua materialização como humano por alguns instantes. Gasparzinho, então, aproveita o desejado período como gente para beijar Kat. Em seguida, transforma-se novamente em espírito. E para sempre.
Esse enredo segue
uma linhagem bastante comum na mitologia e nos contos de fadas: o encanto que
se quebra depois de algum tempo e o herói que precisa retornar ao submundo. É
assim com Bela e sua relação com a Fera; é assim com Cinderela, que tem pouco
tempo; e é assim ainda com Perséfone, que só pode ficar longe da escuridão e dos
domínios de Hades por nove meses.
Tais condições sempre me provocaram. O que fazer nesse curto momento entre amigos familiares? Como aproveitá-lo? O que um retornado da morte teria para nos contar? Como
seria passar o dia ao lado de alguém que se foi, mas que, por algum motivo,
pode se materializar para nós em algum momento? Meu imaginário é tomado por tramas que se propõem a responder parte das indagações.
Na adolescência,
cheguei a escrever um conto chamado Canção de
Inverno. Nele, um casal de uma terra gélida e incerta vai, todos os anos, a
uma casa abandonada onde sua filha — uma pianista de não mais que quinze anos —
volta à vida anualmente e pode ficar com os pais durante um dia inteiro. Ao
anoitecer, contudo, deve retornar ao velho casarão para ser tragada pelas sombras e só ressurgir doze meses depois.
Já adulto, concebi uma história que reconta a ressurreição de Lázaro pela perspectiva dele mesmo. Revivido, o famoso personagem bíblico ceia com as irmãs e relembra como foi conhecer o outro lado da existência. Como uma pessoa que volta à vida enxerga o mundo? Foi essa a pergunta que me conduziu. Isso porque eu adoraria ceiar e conversar com um ressuscitado. Ressalto que o nome do precioso líquido capaz de restituir a vida a Gasparzinho se chamava, não por acaso, “Soro de Lázaro”. Eu nem me lembrava disso quando redigi o conto. Mas meu inconsciente deve ter trazido isso à tona durante a criação.
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| Gasparzinho e Kat no precioso instante em que ele volta à vida. Foto: reprodução. |
Não tenho poções nem máquinas fantásticas. Mas carrego perguntas. E agora as faço para você. Se você estivesse na situação do fantasminha camarada, o que
faria? Para quem entregaria a última dose do soro? Se, por outro lado, você fosse Kat, como
gastaria esses raros minutos ao lado de alguém que você ama? Em uma refeição simples? Num abraço? Ou talvez em
completo silêncio?


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