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Ária nº 6. ‘My Immortal’ e a dor que o tempo não apaga

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Detesto excesso de otimismo. Prefiro a vida como ela realmente é: fria, triste e, para muitos, sem qualquer possibilidade de esperança. Por isso, a canção “My Immortal”, da conhecida banda de rock gótico Evanescence, agrada-me sobremaneira. A letra descreve uma relação de dependência entre duas pessoas. Uma delas se foi (pela morte ou separação). E a outra permanece num profundo estado de luto que afeta até mesmo a sua sanidade. Dentre os vários versos melancólicos, três deles, em especial, me chama a atenção: “Estas feridas não vão cicatrizar. Esta dor é muito real. Há muitas coisas que o tempo não pode apagar”. "My Immortal" foi lançada originalmente no disco Fallen , de 2003. Na contramão da pieguice alastrada por influencers, redes sociais e legendas prontas  —  que dizem que “o tempo cura tudo” e “deixe o passado para trás”  — , a música assume uma postura madura e raramente vista: a aceitação de feridas emocionais. O correr dos dias, no universo da canção, não ame...

Ária nº 5. Luto sob o Sol: a extraordinária metáfora do verão em “Love in the afternoon”, da Legião Urbana

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 Para S., que foi embora cedo demais. Gosto muito da metáfora utilizada pela psicóloga Mary-Frances O’Connor para explicar a dor da perda. No livro O cérebro de luto , a pesquisadora estadunidense nos diz que sofrer com o vazio deixado pela morte de alguém é acordar no escuro, tatear a mesa de jantar e descobrir que ela foi, inesperadamente, roubada. De repente, nosso suporte tão familiar e necessário não está mais na cozinha. E agora? O que fazer? Como sobreviver nesse ambiente conhecido, mas subitamente tão esquisito? Num campo diferente da psicologia – o artístico –, Renato Russo também se vale de uma construção metafórica similar para nos falar sobre o luto: o desaparecimento repentino do verão. A relação entre o Sol e a tristeza é marcante em "Love in the afternoon". Em “Love in the afternoon”, canção do disco O descobrimento do Brasil , o músico apresenta o desabafo comovente de alguém que sofre pela partida de um amigo. O eu lírico da composição se confunde, aliás, ...

Ária nº 4. Acender para ascender: a sublime e dolorosa jornada de “A pequena vendedora de fósforos”

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  Oscar Wilde e Hans Christian Andersen têm uma habilidade que me encanta profundamente: perscrutar lugares comuns e triviais para retirar deles narrativas memoráveis. Em seus contos de fadas, os autores mergulham em ambientes ordinários, lançam sobre eles lentes microscópicas e nos elevam com tramas cheias de lirismo, beleza e ensinamentos. A Menininha dos Fósforos , de Andersen, é uma amostra desse talento para extrair magia e reflexões sublimes de uma situação aparentemente banal – e até miserável. Pelas ruas de uma cidade qualquer, conforme nos conta o narrador, uma pobre garotinha faminta e descalça treme de frio. Enquanto caminha a esmo, sem ter coragem de voltar para a casa, ela observa as luzes e os adornos natalinos que colorem as casas. O medo que retarda seu retorno para o lar está personificado no pai, que a agride quando ela não vende os pacotinhos de fósforos que lhe foram confiados. De acordo com o filósofo francês Gaston Bachelard, em A poética do fogo , as chamas t...

Ária nº 3. Olha só o que eu achei: a doce melancolia de ‘Vento no Litoral’

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  Ser abraçado por um fantasma e me tornar um só com ele. Essa é a sensação que tenho toda vez que ouço Vento no Litoral , da Legião Urbana. Os seis minutos e seis segundos da canção me levam a um longínquo e solitário fim de tarde. Nesse cenário, eu me imagino diante do mar sendo tocado por uma brisa que representa a presença onírica de um amigo que se foi. Profundamente simbólicos e ambíguos, o mar, a brisa e os cavalos-marinhos se unem para criar a atmosfera delicada e dolorosa de Vento no Litoral . A composição está no “V” – disco cheio de referências obscuras e melancólicas. De acordo com a doutora em Literatura Julliany Mucury, na obra Renato, o Russo , as influências de bandas de rock gótico, como a britânica The Cure, são notórias em todo o álbum. Em “Vento no Litoral”, especialmente, há muito dessa soturna melancolia. Letra e melodia são, contudo, melíferas. A música é trucidante e envolvente; triste, mas agradável; dolorosa, porém deliciosa. Até mesmo o encadeamento d...

Ária nº 2. 'Clube da Insônia' e a literatura noturna de Tico Santa Cruz

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  Publicado em 2012 com o primor gráfico da editora Belas Letras, Clube da Insônia é um livro que reúne crônicas, poemas e devaneios do músico Tico Santa Cruz. A obra é resultado do blog homônimo mantido durante anos pelo vocalista do Detonautas. Com um ser híbrido (misto de humano e animal) estampando a capa, a antologia passeia por vários temas — de deleites da luxúria a epifanias espirituais — , mas mantém, em todos eles, a mesma abordagem, que aqui vou chamar de “noturna”. Conforme já anunciado na atraente sinopse, a escrita do roqueiro propõe um mergulho na escuridão da vida urbana — e cumpre muito bem esse objetivo. A famosa escultura O pensador , de Auguste Rodin, símbolo da filosofia, ganha uma versão sombria e animalesca na capa de Clube da Insônia . Foto: reprodução. Ao ler cada um dos 22 textos da coletânea, tive a sensação de estar na janela de um alto edifício olhando a madrugada tragar a metrópole aparentemente adormecida. É como se todas as reflexões de Tico San...

Ária nº 1. Da taverna à telinha: a presença de 'Macário' no seriado 'Tudo o que é sólido pode derreter'

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*Este texto contém spoilers.  É noite de um sábado chuvoso. Thereza (Mayara Constantino) ouve uma música melancólica, e Joana (Isabela Boton) está entediada. A garota, com seus 10 anos de idade e fascinada por filmes de terror, pede, então, à prima mais velha que lhe conte a origem do objeto que está em cima da cômoda do quarto – uma soturna escultura em forma de gárgula. Assim, já repleto de elementos sombrios, começa o sexto episódio de Tudo o que é sólido pode derreter , seriado exibido pela TV Cultura em 2009 e dirigido por Rafael Gomes e Esmir Filho. Com a nobilíssima intenção de mesclar literatura de língua portuguesa ao cotidiano juvenil, a produção prestou uma homenagem à peça teatral Macário logo na sua primeira temporada. Thereza se encontra com um rapaz desconhecido. Esse mote é o mesmo de Macário . Foto: reprodução. Thereza começa a narrar, em tom misterioso, que ganhou a estatueta de um amigo: “Essa é a história de um encontro”. Na sequência, entra um flashback dela e...